13 de abril de 2020

Equívoco da RFB – Artigo, por José Henrique Longo

Famílias com patrimônio ou familiares fora do Brasil utilizam a estrutura de trust por motivo sucessório ou tributário.

Recentemente a Receita Federal manifestou que os valores recebidos de trust devem ser tributados pelo carnê-leão. Esse entendimento é inconstitucional porque os beneficiários recebem tais valores gratuitamente, e estariam sujeitos ao ITCMD e não ao IRPF. Ademais, por ocasião da Regularização de Ativos no Exterior em 2016, a RFB manifestou-se no sentido de que os beneficiários (aqueles que recebem valores do trust) devem incluir na declaração de bens os ativos detidos pelo trust, de modo que, quando o ativo sair da titularidade do trust para o beneficiário, não haverá “aumento de patrimônio” para ser tributado pelo IRPF.

Para saber mais, confira abaixo o artigo que José Henrique Longo escreveu a nossos clientes e parceiros sobre o assunto.


Leão

EQUÍVOCO DA RFB: DISTRIBUIÇÃO DE TRUST SUJEITA-SE AO CARNÊ-LEÃO

Com a Solução de Consulta 41 da Coordenação-Geral de Tributação – COSIT, de 31 de março de 2020, a Receita Federal do Brasil – RFB manifestou entendimento que incide o imposto de renda pessoa física – IRPF sobre valores que o beneficiário receba de trust. Tal entendimento traz um pressuposto que conflita com sua posição anterior à época do Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária – RERCT instituído pela Lei 13.254/16, quando emitiu a Instrução Normativa 1.627/16.

O artigo 9º da IN 1.627/16 cuidou de indicar quem deveria incluir o trust (ou os ativos detidos fiduciariamente pelo trustee) na Declaração do RERCT – Dercat e assim dispôs “é declarante da Dercat o beneficiário de trust ou de fundação de qualquer espécie…”.

O conflito não é expresso pois a referida Solução de Consulta 41/2020 não traz nenhuma orientação específica sobre o registro do bem ou do direito na declaração de bens do beneficiário. Ademais, a novel manifestação fere a Constituição Federal em razão da pretensão de invasão de competência atribuída aos Estados e Distrito Federal pelo seu art. 155, III.

À Solução de Consulta foi dada a seguinte ementa, que mostra a pretensão de se igualarem rendimento ordinário de fonte no exterior e qualquer recebimento de ativo detido por um trust:

ASSUNTO: IMPOSTO SOBRE A RENDA DE PESSOA FÍSICA – IRPF
RENDIMENTO RECEBIDO DE FONTE NO EXTERIOR.
O recebimento de rendimentos oriundos do exterior por residente no País é fato gerador do imposto sobre a renda e sujeita-se à tributação mensal mediante a aplicação da tabela progressiva mensal (carnê-leão) e na Declaração de Ajuste Anual.

Na exposição de seus argumentos, não obstante o Brasil não seja signatário, o agente da Cosit adotou conceitos de trust previstos na Convenção de Haia havida em 01.07.1985 (com vigência em 01.01.1992), relativamente à relação jurídica entre settlor e trustee em favor de beneficiário.

Segundo a Solução de Consulta, a beneficiária passou a receber valores do trust após o falecimento de seu marido e submeteu tal situação à RFB para saber se deveria recolher o imposto de transmissão causa mortis e doação – ITCMD ou o IRPF sobre tais valores.

Diante das constatações acima, aponta que, com fundamento na Constituição Federal e no Código Tributário Nacional, o artigo 8º a Lei 7.713/88 prevê que estão sujeitos ao IRPF rendimentos e ganhos de capital de fontes situadas no exterior recebidos pela pessoa física, e conclui que a situação da beneficiária consulente se encaixa perfeitamente à hipótese do dispositivo legal e portanto deve sujeitar-se ao recolhimento mensal do imposto (carnê-leão) e ser levado à tributação na declaração anual de imposto de renda da pessoa física – DIRPF, conforme o artigo 8º da Lei 9.250/95.

O raciocínio da RFB está correto no tocante às características do instituto do trust, e também à Constituição Federal, ao Código Tributário Nacional e à Lei 7.713/1988 que estabelecem normas aplicáveis ao IRPF. Porém, numa análise superficial e apressada concluiu que, diante do fato de o beneficiário receber ativos do trustee, caracteriza-se o fato gerador do IRPF.

Não há dúvida que a entrega de um bem ou direito a uma pessoa física, para o efeito de ser considerada como hipótese de incidência do IRPF, deve estar caracterizada como renda ou proventos de qualquer natureza. Mas o intérprete da Cosit não se aprofundou no tema da subsunção do fato (recebimento de um bem ou direito pelo beneficiário) à norma (hipótese de incidência caracterizada por renda ou provento de qualquer natureza).

Adotando como correta a interpretação veiculada pela IN 1.627, no sentido de que o beneficiário deve declarar o trust em si (e sendo um direito passível de avaliação) ou o ativo detido pelo trust em sua declaração de bens, é necessário analisar o que ocorre nesse momento, antes do evento de o beneficiário receber de fato qualquer bem ou direito que se encontrava no trust. Repetindo o comando da IN: é declarante da Dercat o beneficiário de trust.

Levando em conta que a Dercat tinha estreito relacionamento com a declaração de bens da DIRPF, tanto é que as pessoas aderentes ao RERCT tinham de retificar suas DIRPFs para incluir os ativos então regularizados, e também para que o contribuinte não voltasse a cometer o ilícito de não declarar o bem localizado no exterior, é evidente que ele deveria continuar a declarar o bem ou direito nas DIRPFs dos anos seguintes enquanto permanecesse como beneficiário do trust.

Assim, a RFB orientou que, quando uma pessoa se torna beneficiária de um trust, deve incluir em sua declaração o novo ativo. Ou seja, mesmo que não tenha recebido efetivamente nada e que tenha apenas a expectativa de receber no futuro o patrimônio que se encontra em poder do administrador (trustee) do trust, deve o beneficiário reportar à Receita Federal o ativo como sendo seu. Não entro na discussão sobre a ilegalidade da referida Instrução Normativa, pois se pretende somente a demonstração do conflito dos atos normativos da RFB.

Ao registrar o ativo em sua declaração de bens, o contribuinte deve registrar também a origem desse novo ativo como um rendimento (e classificá-lo como tributável, de tributação exclusiva ou isento) ou decorrente de uma dívida. Ora, se esse novo patrimônio adquirido pelo beneficiário (na visão da IN 1.627) adveio do settlor no momento de constituição do trust ou em razão de sua morte, ocorreu uma transferência patrimonial a título gratuito, que corresponde a uma doação ou à sucessão do settlor ou do beneficiário anterior. E, sendo assim, a origem desse novo patrimônio (trust ou ativo detido por ele em benefício do contribuinte) se vincula ao rendimento isento denominado na DIRPF como transferência patrimonial, que compreende doação, herança e legado.

A Constituição Federal estabeleceu no artigo 155, III, a competência para instituir imposto sobre herança e doação aos Estados e Distrito Federal, em cuja norma contém a proibição implícita dirigida às demais pessoas jurídicas de direito público de tributar esse mesmo evento, tecnicamente denominado fato gerador. Deste modo, a União não pode exigir imposto sobre a transferência gratuita de ativos a título de IRPF ou de qualquer outro tributo.

Assim, independentemente de existir norma específica na lei estadual acerca de trust, o beneficiário estará sujeito ao Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação – ITCMD caso reconheça e registre a origem de seu acréscimo patrimonial como transferência patrimonial, rendimento isento de IRPF.

O resultado dessa inclusão na DIRPF é que o beneficiário passa a ter o ativo como sendo de sua propriedade e com um custo fiscal. E a partir dessa situação, as ocorrências relativas a esse ativo devem se sujeitar à apuração de rendimento tributável (por exemplo, distribuição de dividendos de uma companhia sediada no exterior que não se confunde com as ações sejam detidas pelo trust, declaradas pelo beneficiário), de tributação exclusiva (apuração de ganho ou perda de capital na situação de venda do ativo detido pelo trust) ou ainda de mera substituição de titularidade sem acréscimo patrimonial (o registro no certificado das ações de uma companhia passar do trust para o beneficiário), tal como se sujeitam todos os bens e direitos da pessoa física contribuinte no Brasil.

Portanto, se o ativo já é considerado de propriedade do contribuinte beneficiário do trust, não é possível que o mesmo ativo quando transferida a titularidade efetiva seja objeto de incidência de IRPF sem a análise de todo o contexto para se saber se o ativo recebido já estava declarado pelo contribuinte, situação em que não ocorre acréscimo patrimonial, ou se, de fato, é um rendimento decorrente desse seu ativo, considerado um acréscimo patrimonial sujeito ao IRPF.

A Solução de Consulta 41/2020 leva a engano o contribuinte pois, para que possa ser tributado pelo IRPF, todo e qualquer ativo recebido do trust deve ser um “acréscimo patrimonial”; para que essa premissa fosse verdadeira, seria necessária a situação de que nem o trust nem o ativo detido por ele deveria estar lançado nas DIRPFs de anos anteriores. Com efeito, se o bem ou direito já estiver declarado pelo beneficiário (conforme a orientação a IN 1.627), tecnicamente não há como o contribuinte declarar um rendimento correspondente a um bem ou direito que já era seu.

Em suma, a RFB emitiu dois atos normativos conflitantes entre si ao, por um lado, orientar o contribuinte a declarar os ativos do trust pelo fato de que é beneficiário nos termos da IN 1.627/16, e por outro lado orientar, por via transversa na Solução de Consulta 41/2020, que o ativo recebido do trust (do qual o contribuinte é beneficiário) deve ser invariavelmente registrado como acréscimo patrimonial, a fim de ser tributado pelo IRPF. Se o ativo já está na DIRPF, como pode ser considerado um acréscimo?

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